terça-feira, 17 de junho de 2025

O segredo da vovó Alberta

Rubinho entrou pela porta da sala e ouviu sua avó cantando enquanto remendava uma velha calça:

“Atrás de uma bola
Vem sempre um menino
Cuidado com ele que é pequenino
Atrás de um velhinho que esmolas implora
Lá vem o cãozinho linguinha de fora

Dei água ao bichinho
Pedi a mamãe, que desse ao velhinho
Um pedaço de pão
Seus olhos brilharam se umedeceram
Notei que chorava de tanta emoção…”

_ Nossa, vovó! Que música é essa? Nunca te ouvi cantar essa.

  Dona Alberta parou a costura e ajeitou os óculos, firmando o olhar em seu neto.

_ Oi, meu filho! Nem te vi entrar! Essa é uma música antiga, do meu tempo de garota. Estava aqui remendando a calça do seu pai e me lembrando o quanto eu cantava quando criança e também cantava para o seu pai quando ele era um menino do seu tamanho.

_ É mesmo, vovó? A senhora cantava muito?

_ Muito… muito mesmo. O seu pai amava ouvir essa música na hora de dormir. Sempre me pedia: “canta aquela do menino com a bola, mamãe!” e eu cantava uma, duas, três vezes… até ele pegar no sono.

_ Que legal! E qual o nome dela? 

_ Se chama “Atrás de uma bola”, do Palhaço Carequinha. Era uma música meio triste, meio alegre, meio nostálgica. Me traz muitas recordações… de quando eu ainda era jovem e tinha a casa sempre cheia de gente. Seu pai e seus tios correndo pela casa, outra hora eram os colegas que vinham brincar com eles ou as vizinhas que apareciam no meio da tarde com um bolo na mão, prontas para uma boa prosa com café.

_ Prosa?

_ Uma conversa, um bate-papo, como vocês dizem. Prosa é isso. Em vez de conversar pelo WhatsApp a gente ia na casa uns dos outros pra tomar um café e conversar, colocar as fofocas em dia – disse dona Alberta sorrindo.

_ Ah, tá. Entendi. E esse palhaço, como é mesmo o nome? Ele era famoso?

_ Palhaço Carequinha. Era muito famoso. Todas as crianças já tinham ouvido falar dele. Começou trabalhando em um circo da família dele, aliás, ele nasceu em um circo. A mãe dele, que era trapezista, entrou em trabalho de parto no circo mesmo, logo após se apresentar no picadeiro. Depois de adulto ele fez programas de televisão e gravou muitos discos. Disco era onde as músicas ficavam gravadas pra gente colocar numa coisa chamada “toca-discos” e ouvir quando quisesse. E essas músicas eram tocadas em todas as festinhas de aniversário das crianças. Fazia o maior sucesso.

_ Que legal, vovó! Então ele devia ser bom mesmo!

_ Era, sim! Muitos palhaços queriam imitar o jeito dele, seus truques e brincadeiras. Ele chamava as crianças para subirem no palco e participar ao vivo das suas apresentações e com isso, acabavam fazendo parte do espetáculo. A plateia ia ao delírio. Todo mundo queria ser escolhido pra participar. E por falar em música de circo, outra que ficou muito conhecida dizia assim:

“Hoje tem marmelada?
Tem sim senhor!!!
Hoje tem goiabada?
Tem sim senhor!!!
E o palhaço o que é?
É ladrão de mulher!!!”

_ Essa música se chama “O Mundo do Circo” e o autor dela é o compositor Teixeirinha. Ah, como era divertido ir com a família ao circo! Era um grande evento. Esperávamos ansiosos pela vinda do circo à nossa cidade.

_ É mesmo? Que legal, vó! Sabe que eu nunca fui ao circo? Sempre achei essa coisa de palhaço meio boba, meio infantil demais. Será que eu estava errado? Conta mais como é o circo, vovó. Eu quero saber mais!

_ Olha, no meu tempo ainda tinham os números com os animais adestrados que eram lindos, enfeitados com todo tipo de brilho e ornamentos. Era a maior sensação. Tinha leão, elefante, cachorros, pombos, coelhos e muitos outros. Era muito lindo. Mas com o tempo, percebemos o quanto esses animais sofriam ao serem mantidos longe de seu habitat natural, viajando pra lá e pra cá em jaulas pequenas e apertadas, passando fome e apanhando cada vez que erravam um truque. Felizmente as autoridades agiram e criaram leis que proibiram o uso de animais em apresentações circenses.

_ Puxa! Eu nem imaginava!

_ Pois é. Mas isso não tirou em nada a magia do circo. Ainda sobraram muitos recursos e atrações. Os trapezistas voando pelo ar com suas acrobacias, os malabaristas equilibrando mil coisas ao mesmo tempo, os mágicos com seus truques impressionantes, os palhaços divertindo o público de todas as idades. Ah, quem não se sente criança outra vez, sentado na plateia de um circo? Eu se fosse você não perderia mais tempo. 

_ É verdade, vovó. Acho que vou parar de preconceito e vou assistir a uma apresentação assim que tiver um circo novo por aqui.

_ Sabe, Rubinho, eu preciso de mostrar uma coisa. Mas promete que não conta pra ninguém?

_ Prometo, vovó.

            Dona Alberta colocou a costura em um canto do sofá e saiu em direção ao seu quarto. Voltou com uma velha caixa de presentes redonda, com um grande laço amarelado na tampa.

_ Está vendo esta foto, meu filho?

_ Sim, vovó. Quem é essa moça? E por que só aparece metade do corpo dela? Cadê a outra metade???

_ Sou eu, Rubinho. Esta moça sou eu. Não conte a ninguém, mas eu era uma artista de circo. Eu era a moça que era serrada ao meio.

_ O quê??? Como assim, vovó????

Dona Alberta não conteve a gargalhada.

_ É só um truque, meu filho! Eu não era serrada de verdade, claro! Mas era um truque muito bem feito, viu? Meus pés falsos até se mexiam, separados do resto do meu corpo. Era tão bem planejado que as pessoas gritavam e aplaudiam ao mesmo tempo, assustados e admirados com o que estavam vendo. Nem os adultos conseguiam descobrir qual era o truque. Era muito realista. E eu amava essa sensação de estar ali, no centro das atenções. Era o meu momento de brilhar.

_ Uaaau!!! Que massa!!! E por que você nunca me contou isso, vovó???

_ Ah, meu filho. É uma longa história. As pessoas eram muito preconceituosas. Apesar de todos se divertirem muito indo ao circo, nenhum pai de família queria ter um artista na família. Nós tínhamos fama de preguiçosos, beberrões, pessoas sem muita moral. As mulheres, então, sofriam ainda mais preconceito. Diziam coisas horríveis sobre nós. É melhor eu nem repetir pra você.

_ Que triste, vovó…

_ É sim. E tem mais: o seu avô também trabalhava no circo. Ele era adestrador de leões.

_ O quê??? Não, vovó. A senhora só pode estar brincando comigo!!! O meu avô Clemente, um adestrador de leões???

_ Isso mesmo, e dos melhores!

_ Eu nunca poderia imaginar, nem em um milhão de anos!

_ Pois é verdade. Nós fazíamos parte do Circo Los Angeles, e foi lá que a gente se conheceu. Nos apaixonamos e nos casamos e tive o meu primeiro filho lá também.

_ Peraí. Primeiro filho? Meu pai? Meu pai nasceu em um circo?

_ Sim… não só nasceu como também trabalhou conosco por um tempo ainda. Ele era o Palhaço Marmotinha. Começou aos três anos de idade e foi até aos oito, quando baixaram a lei que proibia as apresentações com animais. O circo quase faliu. Ficamos sem saber o que fazer. Bem nessa época o meu pai nos chamou para abandonar essa vida e ofereceu emprego ao seu avô na fábrica dele. E foi aí que abandonamos a estrada para nos tornarmos esse casal “ultra convencional” que você sempre conheceu. Já estava mesmo na hora, estava difícil conciliar o circo e os estudos do seu pai, sempre mudando de cidade em cidade.

_ Uau. Eu nem sei o que dizer. Altas revelações aqui hoje!

_ Melhor não dizer nada mesmo. Seu pai e seu avô nunca quiseram revelar essa parte do nosso passado, por medo do julgamento das pessoas e eu vou respeitar a vontade deles. Só te contei porque confio em você.

_ Pode deixar, vovó. Seu segredo está seguro comigo.

   Mais tarde, na mesa do jantar…

_ Papai, você pode me levar no circo?

O pai de Rubinho quase se engasgou com a comida.

_ No circo, meu filho? Você nunca se interessou por isso. Por que agora?

_ Por nada não, papai. Só curiosidade mesmo. Ouvi dizer que chegou um novo circo na cidade e me deu vontade de conhecer.

Dona Alberta e Rubinho se olharam e ela deu um leve piscar de olhos.

_ Sei… tá bom, levo sim. Vamos saber direitinho os horários e preços… e eu te levo lá.

   O jantar prosseguiu normalmente enquanto dona Alberta cantarolava:“Atrás de uma bola, vem sempre um menino…. nã-nã-nã-nã-nam…. lará, lará…”

Por: Bia Borges

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