Oi, meu nome é Beatriz, tenho quarenta e dois anos e vou te contar a história do dia em que a minha irmã mais nova sumiu.
O ano era mil novecentos e noventa e quatro (sim, já existia gente na Terra antes dos anos dois mil), eu morava em Brasília e tinha onze anos.
Fazia um ano que nós tínhamos nos mudado do interior de Minas (uma cidade chamada Ituiutaba). Era tudo novo e diferente, estávamos gostando muito dessa nova vida, apesar das saudades que sentíamos nos nossos amigos e familiares que deixamos pra trás.
O Natal se aproximava e estávamos ansiosos para viajar para a casa dos nossos avós em Ituiutaba. Só tinha um problema: meus pais não poderiam ir, por causa do trabalho. E eu e meus irmãos ainda éramos muito novos para viajar sozinhos: João Pedro tinha 14 anos, eu tinha 11 e minha irmã Joyce tinha apenas 9. Então nossos pais pediram para uma amiga da nossa família, chamada Rosa, nos acompanhar nessa viagem de pouco mais de quinhentos quilômetros, que duraria aproximadamente nove horas.
O dia finalmente chegou e nossos pais nos levaram até a rodoviária, que em Brasília se chama “rodoferroviária”, pois do mesmo lugar partem ônibus e trens. O lugar estava lotado, como se vê em todo final de ano.
Pessoas andavam com passos apressados, quase correndo, outras realmente correndo. Algumas sozinhas empilhando malas, pacotes e caixas, outras arrastando crianças chorosas, tentando desviá-las dos carregadores de malas e chegar a tempo ao seu terminal sem perder a viagem, nem a criança, nem as malas.
Confesso que naquela época, como eu ainda era muito jovem e não tinha filhos, aquilo tudo era pura diversão. Eu só tinha que me preocupar comigo mesma e com o dinheiro que eu havia guardado para comprar minhas batatas e coca-cola quando o ônibus parasse em algum posto no meio do caminho. Era o ponto alto daquela aventura. Bom, era isso que eu pensava até aquele dia.
Nos despedimos dos meus pais e entramos no ônibus, procuramos nossos lugares e nos acomodamos. Eu junto com o meu irmão João Pedro e a Rosa junto com a minha irmã Joyce, as quatro poltronas praticamente lado a lado, nós do lado esquerdo do ônibus e elas do lado direito, bem no fundo, perto do banheiro. Aguardamos os outros passageiros entrarem e tomarem seus lugares, em seguida veio o ajudante do motorista conferindo se tudo estava certo e o número de poltronas ocupadas.
A viagem finalmente começou e eu senti aquele gostinho bom de expectativa e aventura que a gente sente quando o ônibus ou o carro finalmente pegam a estrada. Tudo corria bem, dentro da normalidade. O ônibus era um pouco velho e exalava um cheiro característico de ônibus velho: uma mistura de poeira, suor, cheiro de xixi vindo do banheiro (cuja porta nunca travava direito e ficava batendo durante a viagem toda) e cheiro de desinfetante de lavanda ou pinho em níveis tão altos que a gente quase morria sufocado. Tá, exagerei. A gente não morria sufocado. Mas era o bastante pra nos fazer tossir e espirrar algumas vezes.
As primeiras horas se passaram… o motorista diminuiu as luzes dentro do ônibus para que os passageiros pudessem dormir. Alguns passageiros já começavam a roncar. Aqui e ali ouvíamos algumas conversas cochichadas, alguém mexendo insistentemente numa sacolinha de plástico tentando pegar não sei o quê. Uma tosse, um espirro, uma criança resmungava, a porta do banheiro batia. Aquele balanço lento e constante do ônibus nos “ninando” pra lá e pra cá, como numa rede preguiçosa de uma tarde de domingo. Eu não dormi. Senti vontade de ir ao banheiro, mas resolvi esperar o ônibus parar. Imaginei que a primeira parada estaria próxima, devido ao tempo em que já estávamos viajando. E se você já viajou de ônibus você sabe bem o malabarismo que a gente tem que fazer pra usar o banheiro em movimento. Você não sabe se segura as calças, a porta ou se apoia pra não sentar no vaso. É um espetáculo à parte. Por isso resolvi aguardar.
Dali uns vinte minutos o ônibus reduziu a velocidade, pegou a direita e parou em um posto em algum lugar do caminho. Não vi nenhuma placa indicando em que cidade estávamos e o motorista também não nos disse. Apenas avisou: “Parada para descanso. Quinze minutos!”.
Meu irmão estava dormindo. Eu, a Rosa e a Joyce estávamos acordadas. Eu disse que queria ir ao banheiro. A Rosa disse que também iria, e perguntou:
_ Quer ir ao banheiro, Joyce?
_ Não. Vou ficar aqui mesmo.
_ Tem certeza?
_ Tenho. Pode ir.
Então eu desci do ônibus com a Rosa, fomos ao banheiro e voltamos logo pro ônibus. O motorista ligou o motor do ônibus e saiu do seu lugar para resolver alguma coisa dentro do posto. E nessa hora a Joyce dispara:
_ Quero ir ao banheiro!
_ Tem certeza? – Disse a Rosa – Não quer ir aqui no banheiro do ônibus mesmo, aproveitando que está parado?
_ Não! É muito sujo! Quero ir no banheiro do posto!
Rosa fez cara de quem não gostou muito, mas concordou:
_ Então vamos! Eu te levo. Vamos rapidinho.
E desceram. E o motorista voltou. E o ajudante do motorista entrou para conferir e contar os passageiros. E eu me apavorei. Eu sabia que eu tinha que fazer alguma coisa, mas eu tinha apenas onze anos e uma vergonha enorme de falar com quem eu não conhecia. Ainda mais pra dizer que minha irmã foi ao banheiro e que por causa dela a viagem ia atrasar. Se fosse hoje eu com certeza falaria, gritaria, faria um “auê” se precisasse. Mas naquela hora ali, sozinha, eu não tive coragem. Falei com uma voz bem fraca e baixa, como se estivesse cometendo um crime:
_ Falta a minha irmã!
O ajudante me olhou.
_ Anh?
_ A minha irmã tá no banheiro – falei.
Ele me olhou com uma cara carrancuda, virou as costas e saiu. Provavelmente ele não me entendeu e não fez questão de entender. E eu, com vergonha, pensando que ia tomar uma enorme bronca e que seria vaiada pelo ônibus inteiro por atrasar a viagem (sim, era isso que se passava na minha cabeça pré-adolescente naquele momento), apenas me encolhi e comecei a me desesperar, pensando na minha irmã que havia ficado pra trás, no meio da estrada escura e deserta.
Ao meu lado, meu irmão dormia tranquilamente, sem nem imaginar o que estava acontecendo. Comecei a balançá-lo freneticamente.
_ João! João! Acorda!
_ Anh???
_ Acorda, João! O ônibus saiu e deixou a Joyce e a Rosa pra trás!!!
_ Como assim??? Você tem certeza???
Aquela pergunta me fez suspirar e revirar os olhos, tentando não dar uma má resposta nele. Mas não aguentei:
_ Claro que eu tenho certeza. Ou você está vendo as duas ali ao lado???
O ônibus continuava andando rumo ao seu destino, e nos distanciando cada vez mais da minha irmã…. meu desespero aumentando… não sabia o que fazer….. e agora que eu já não tinha falado nada, ia ficando cada vez mais difícil pensar em falar com o motorista, pois ele certamente não voltaria para buscá-la por conta de um erro meu.
Comecei a chorar baixinho e orar, pedindo a Deus que cuidasse da minha irmã e que resolvesse aquele problema de alguma forma. Já comecei a imaginar a minha irmã sozinha naquele posto… ela e a Rosa. O dinheiro acabando e elas virando mendigas para sobreviver…. eu não sabia nem o nome do posto nem em que cidade ele se localizava, nem como era o lugar em volta, pois estávamos viajando à noite e não dava pra ver nada na estrada.
Será que algum dia eu veria minha irmã de novo? Será que ela me perdoaria por não ter feito nada? Será que meus pais me perdoariam? Será que aquele problema teria solução??? Lembrem-se de que naquela época não existia telefone celular. Então nós estávamos absolutamente sem nenhuma comunicação.
Depois das horas mais torturantes da minha vida, paramos em Uberlândia, o último destino antes de chegar em Ituiutaba. Eu reuni toda a minha coragem e desci para falar com o motorista. Comecei a explicar a história e já desabei chorando.
_ Menina, por que você não me falou isso lá no posto?
_ Eu tentei falar, eu falei baixinho. Mas eu não tive coragem de gritar – e comecei a chorar novamente.
Alguns funcionários e curiosos já começaram a se aglomerar ao meu redor para tentar entender o que estava acontecendo. O motorista conversava com os funcionários daquela empresa de ônibus para tentar achar alguma solução.
Virei a atração da rodoviária. Meu irmão ao meu lado, tentava me acalmar, coçava a cabeça, suspirava, mas também não sabia o que fazer.
Enquanto estávamos ali nesse imbróglio, estaciona na plataforma ao lado outro ônibus da mesma empresa, e dele descem minha irmã e a Rosa.
Eu mal podia acreditar!!!!! Minha irmã estava a salvo!!!!
Como era final de ano, algumas empresas disponibilizavam ônibus extras para atender à demanda. E quando elas saíram do banheiro e viram nosso ônibus partindo, a Rosa procurou o motorista do ônibus extra e explicou a situação. E logo elas seguiram no próximo ônibus, apenas alguns minutos depois de nós. Tudo estava resolvido e essa longa viagem terminou com um final feliz.
E se eu puder te dar um conselho é esse: se for pra salvar sua vida ou a vida de alguém, não tenha medo de nada, grite com todas as forças dos seus pulmões!
Feliz Dia do Irmão!
Por Bia Borges
